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Ilustração |
A desconfiança do consumidor se justifica. Em 2020, houve uma tempestade perfeita sobre o mercado de smartphones no Brasil. A alta do dólar, de quase 30% no acumulado do ano, começou a ser repassada para os celulares — mesmo quando montados no País, os aparelhos contam com componentes importados, como chips de processamento e de memória. Um exemplo é o Moto G Plus, da Motorola. Em 2019, o Moto G8 Plus custava R$ 1,7 mil. No ano passado, o Moto G9 Plus foi lançado por R$ 2,5 mil. Agora, o Moto G100, o "substituto" do Plus, chega por R$ 4 mil. Claro, a cada nova geração, os fabricantes incluem componentes mais novos, normalmente mais caros, mas as marcas admitem que o aumento atual está atrelado à alta da moeda americana.
Além disso, a pandemia jogou muitas incertezas sobre a economia. A taxa de desemprego chegou a 13,5%, o que também fez o consumidor repensar compras de eletrônicos. O resultado disso foi a queda nas vendas de celulares novos. Segundo a consultoria IDC, o mercado de smartphones encolheu 8% em 2020 (a última vez que houve retração no País foi em 2018, também de 8% ante o ano anterior, e 2019 viu uma alta de 8,8%). E poderia ter sido pior: no início da pandemia, as projeções eram de retração de 19% nas vendas. Segundo Renato Meireles, analista da IDC Brasil, o auxílio emergencial ajudou a amenizar a queda.
"O preço de um celular novo é comida para dois meses em casa", diz Josyel Araujo, 27. O professor de educação física trabalhou como entregador de app durante a pandemia e comprou dois celulares usados no período: um para trabalhar, mais exposto à rua e sem seus dados pessoais cadastrados, e outro para uso pessoal, que ficava em casa e tinha contas de banco e outras informações.
Necessidade
Por outro lado, a pandemia forçou a população a encarar a
digitalização de serviços como alimentação, educação e entretenimento,
aumentando a demanda por dispositivos de tecnologia. Por motivos
profissionais e pessoais, ter um celular conectado virou requisito
mínimo para atravessar o período. Mas, em tempos de vacas magras, as
pessoas preferiram aparelhos de segunda mão, em um movimento que lembra o
setor automotivo.
A fotógrafa manauara Caroline Lins, 22, optou por esse
caminho. A pandemia impediu que ela realizasse ensaios de fotografia
presencialmente e, em isolamento, ela usa o Facetime, recurso de
videochamadas do iPhone, para guiar os seus modelos em poses e
iluminação. O problema é que, com uso mais intenso do smartphone, a
memória de 32 GB do seu iPhone 6S, aparelho lançado em 2015, não dava
conta do espaço de novas fotos tiradas. Era preciso trocar de aparelho.
A escolha foi simples: em vez de correr atrás de um
aparelho novo, ela preferiu investir em um usado. "Pensei que, se eu
pesquisasse, poderia fazer um bom negócio e economizar uma boa grana",
conta. No fim, ela comprou de um vendedor autônomo um iPhone 8 de 256
GB, a capacidade máxima do modelo. Na transação, Caroline diz que
economizou cerca de R$ 1 mil perto do preço vendido em aparelhos novos
no varejo.
Lojas de usados
A escolha por aparelhos usados foi sentida por quem atua
nesse mercado. Fundada em 2014, a startup Trocafone viu as vendas de
aparelhos crescerem em 60% no ano passado em comparação com 2019. A
expectativa para 2021 é continuar o crescimento na casa dos dois
dígitos, sem a empresa especificar qual é a projeção.
"Há 5 anos, as pessoas tinham receio de comprar um
smartphone usado porque ninguém oferecia garantia, diagnóstico ou
reparo. Comprava-se sem conhecer a procedência. Mas smartphone é igual
ao mercado de carros: você não sabe as condições do produto, mas compra o
seminovo com garantia de concessionária e de uma empresa que responde
pelo problema", explica o CEO da Trocafone, Guille Freire. "Está mudando
a visão de consumo do consumidor."
O negócio parece estar funcionando: as reclamações da
Trocafone em plataformas como o Reclame Aqui são baixas e o índice de
solução médio de problemas é de 91,1%. Além disso, outras empresas do
ramo surgiram, como a Brused e Yesfurbe — esta, ao contrário das
concorrentes, não oferece garantia.
Um percalço encontrado no segmento de
seminovos é o risco de alimentar o mercado de roubados ou furtados. Para
evitar essa dor de cabeça, o consumidor deve suspeitar de preços muito
abaixo do que se encontra em produtos semelhantes, inclusive fugir de
anúncios de celulares "bloqueados" — nos iPhones, isso significa que a
pessoa cujo celular foi roubado fez o bloqueio de todo o software como
medida de segurança, impedindo que aparelho tenha qualquer tipo de
usabilidade para terceiros. E, sempre que possível, exigir a nota fiscal
original da aquisição — hoje em dia, as lojas costumam inclusive enviar
uma nota fiscal eletrônica, facilitando a preservação do documento.
Outro passo essencial é o interessado, antes
de efetivar o pagamento e já com o celular em mãos para o teste de
condições, procurar o IMEI do celular, espécie de RG único certificado
pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em todo o País. O
jeito mais fácil de encontrar o código é digitar *#06# no próprio
telefone, mas é possível buscá-lo nos ajustes do Android e iPhone. Com o
número em mãos (14 dígitos), basta ir ao site
consultaaparelhoimpedido.com.br, da própria Anatel, e checar a situação
do dispositivo. A Troca fone, por exemplo, afirma que faz esse mesmo
procedimento com todos os smartphones comercializados na empresa.
Nada disso dá certo, no entanto, se a vítima
do aparelho roubado não prestar queixa junto às autoridades. "Por isso é
necessário que a população tenha consciência de que, logo após furto ou
roubo, a vítima faça registro de ocorrência na delegacia de polícia,
informe o número IMEI para realizar o bloqueio", explica Guilherme
Farid, chefe do gabinete do Procon-SP. Vender ou adquirir objetos
roubados, com ou sem consciência da origem, é crime de receptação, com
penas de 1 a 8 anos de cadeia, diz.
"O mais importante é tomar cuidado, porque o
desconto pode sair caro", avisa Fernando Meirelles, professor da
Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Meirelles, no entanto, reconhece o potencial
do setor com o surgimento de iniciativas. Para ele, incentivos para
comprar smartphones de segunda mão surgem quando há prova de que o
aparelho está em bom estado e tem garantia, fatores que se aproximam ao
que é oferecido por celulares novos. "Esse mercado vai começar a
aparecer em mais lojas porque o volume de celulares em circulação é
muito grande", diz. Ele lembra também que o País tem alta saturação de
celulares, de cerca de mais de 1,5 celular para cada habitante. Ou seja:
existe um grande estoque para o mercado de segunda mão.
Esse imenso volume de aparelhos no País, diz Renato
Meireles, da IDC Brasil, representa o amadurecimento do mercado. Poucos
consumidores são marinheiros de primeira viagem: a maioria já está em
sua terceira, quarta ou quinta geração de smartphones. Isso torna o
cliente mais exigente ao escolher os aparelhos, geralmente em busca de
mais capacidade de memória de armazenamento ou melhor qualidade de
câmera, por exemplo.
Não à toa, diante da queda de 8% do mercado em 2020, a
IDC aponta que o ticket médio dos celulares cresceu 24% no mesmo
período, o que indica que as pessoas podem ter comprado menos celulares,
mas quem comprou pagou mais caro — seja pelo dólar mais salgado, seja
porque investiu mais no "upgrade".
"Com o aumento do ticket médio e o amadurecimento de
produtos mais premium, as vendas de usados são estimuladas", aponta
Meireles. "O consumidor tem poder aquisitivo baixo e o sonho de consumo é
o smartphone premium e super premium. E, como o mercado oferece mais
esse tipo de produto, isso estimula a venda de aparelhos de segunda mão.
É uma tendência global", diz.

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